sexta-feira, novembro 26, 2010

Dona Porreta


Marlene e o time de futebol

São nove horas da manhã de sábado e os alunos da escolinha voluntária de futebol do Samambaia já estão treinando. São amantes do esporte e veem nele um futuro melhor. Eles são moradores do Jardim do Trevo, região periférica de Praia Grande que abrange Melvi, Samambaia, Esmeralda, Ribeirópolis e Parque das Américas.
Os garotos enfrentam dificuldades para jogar. Além de sua condição financeira, têm de enfrentar as más condições do local e a falta de infraestrutura. O terreno que utilizam para treinar é da prefeitura, está entre um terreno de aterro e um canal, ambos em situação deplorável, uma ameaça à saúde dos meninos e da população em geral.
 É difícil andar por ali sem reclamar do mau cheiro e se coçar das picadas de mosquito. O canal Pau-Brasil, no bairro Samambaia, é motivo de reclamação desde a sua construção, justificada pela prefeitura como uma solução para as enchentes, o que não ocorre na prática.
O time de futebol só é mantido graças à Marlene Melo, uma espécie de madrinha da comunidade. Foi ela quem doou as traves do gol, os cones de treino e os coletes. É ela também que reclama ao poder público a situação em que vive a comunidade. Os meninos dão apenas uma contribuição simbólica de R$ 1,00 por mês, para a manutenção dos equipamentos.
Marlene é conhecida como “Porreta”, um apelido dado carinhosamente por seus amigos e conhecidos. É raro quem não conheça a sua fama na região, já que há 20 anos ela realiza diversos trabalhos voluntários.  Ela conta que ajuda a comunidade por considerá-la sua “missão”, faz porque gosta e acha que tem de dividir o que pode com quem precisa.
Não são poucos os motivos que fazem de Marlene uma pessoa querida na comunidade. Além de ajudar os meninos da escolinha de futebol, auxilia quem bate à sua porta, e muitas vezes, não sabe nem o nome de quem pede. Marlene explica que não faz triagem alguma, ajuda quem precisa como e com o que pode.
Apesar de ter pintado o seu nome no muro de sua casa em letras vermelhas garrafais, a pajem-enfermeira aposentada prefere ser discreta com na vida pessoal, não fala sobre filhos ou possíveis maridos. Ninguém sabe ao certo se ela já foi casada, ela garante que sua vida pessoal não é interessante para ninguém e ainda ironiza: “Tem gente que acha que vivo de pensão de ex-marido. Cada um inventa uma história, como eu vivo é problema meu”.
Por ser conhecida na cidade, Marlene já se candidatou a vereadora por três vezes, diz que não gosta nem de mostrar suas ações voluntárias. Segundo ela, seus trabalhos são feitos porque há vontade e não por interesse. “Eu podia ter fundado uma ONG, pegar dinheiro da comunidade e andar de carro zero pra lá e pra cá. Mas não uso o meu trabalho nem para deduzir do imposto de renda”, declara.
Ao lado de sua casa, Marlene mantém um barracão, um espaço pequeno construído com madeira e telhas velhas. Na porta a decoração é feita com apetrechos de madeira e até uma Hello Kitty de isopor, daquelas usadas em decoração de festa infantil. No interior, escuro, uma geladeira vermelha antiga, mas que ainda “dá pro gasto”. Ela mostra orgulhosa o pequeno espaço, fruto de seu trabalho, que garante a alegria de muitos. “Sobrou guardanapo do Dia da Criança, já vou economizar no Natal”, comemora. Na lateral, a chamada: “Trabalho voluntário, seja bem-vindo”. É no barracão que ela faz lanches para os meninos no fim dos treinos. Porém, o espaço precisa passar por reformas, já que ficou totalmente alagado com as chuvas do mês de setembro. Atrás do terreno há um fogão de cimento, cujas bocas foram roubadas, e também a estrutura do que um dia foi um carro alegórico.
Mas é no local que Marlene deposita a esperança de poder ajudar mais a comunidade. Sua intenção é construir um salão e uma cozinha, que servirão não só para servir o lanche da criançada, como também para a realização de eventos beneficentes. É claro que ela não age sozinha. Tem colaboradores que a auxiliam, realizando serviços de serralheria, caso de Paulo Silva Souza que diz não ter palavras para descrever o trabalho da amiga: “A conheço há tanto tempo e não me lembro de um dia que ela não tenha ajudado alguém”.
Uma das fortes características de Marlene é sua espontaneidade. Ela faz com que qualquer um se sinta em casa e deixa todos à vontade enquanto serve bolo de aipim e guaraná. Conversar com ela não é difícil, Marlene fala “pelos cotovelos” e de vez em quando solta um palavrão, principalmente quando o assunto é política: “Me coloca lá que eu vou ensinar como se administra uma cidade”.
Mesmo com o jeito de quem fala grosso, bate o pé e é teimosa, Marlene é doce e tem o coração mole. Fato comprovado pelo berço que ela deixa em seu quarto, exclusivo para a sobrinha de 2 anos, de quem ela fala com o orgulho que a deixa com os olhos brilhando. As doações que fez não se restringem só a alimentos ou brinquedos. Durante a entrevista, ela doou a uma amiga, cuja filha tem bronquite, uma tartaruga — superstição antiga que afirma que se a pessoa ganhar o animal, sem saber a finalidade, estará curada da crise.
A madrinha da comunidade faz questão de mostrar a região. Sua intenção é mostrar o motivo da revolta que a faz pregar faixas pela rua. Em primeiro lugar, ela mostra o canal em frente à casa onde mora — a água é cor de barro, o cheiro de esgoto predomina e o que se vê não agrada: cachorro, porco e peixes mortos. Além de garrafas, móveis e sapatos que flutuam enquanto os meninos do futebol tentam pegar a bola que caiu lá, usando um barquinho feito de uma espuma espessa que também foi jogada lá. “A gente não pode abaixar a guarda, tem que lutar de cabeça erguida”, incentiva a moradora.
A caminhada continua, na rua ao lado é nítida a falta de saneamento básico, a água que seria de esgoto, se acumula no asfalto. Andamos mais um pouco e ao pé do morro, onde há a nascente de um rio, há casas sem água encanada, sem móveis inteiros, pois foram todos destruídos pela enchente e a reclamação da moradora Maria Creuza: “A gente vive sem quase nada, a Porreta é uma das únicas que ainda lembra da gente”.
Mas para amenizar a situação, Marlene não apela só ao poder público, ela também pede a colaboração dos moradores, principalmente para que eles não joguem animais mortos no canal, nem móveis quebrados. “Quando está sol, dá para ver o gás que sai daqui. Tive que colocar telas em todas as portas e janelas, principalmente por causa dos ratos”.
O apelo que faz para a população vem em forma de cartazes, pedindo que não se jogue animais mortos e lixo em toda a extensão do canal. Ela pede também que a prefeitura realize uma boa limpeza no local, o que foi parcialmente feito. “Eles chegaram aqui, tiraram o lixo do canal, mas não lavaram a rua. Resultado: toda a água suja impregnou a rua e a gente teve de gastar litros de água para lavar tudo”.
Marlene diz que gosta de provar o que fala, apesar de afirmar por várias vezes que “não deve nada a ninguém”. Enquanto conta as misérias do povo e suas atitudes para tentar mudar essa realidade, mostra fotos do barracão cheio de água e ela e uma amiga tentando salvar o que ainda restava. Os meninos a cercam curiosos para ver as fotos e saber o que são aquelas madeiras e janelas guardadas, e ela explica que são doações de amigos para levantar seu sonho: “Preciso de mais aterro, a construção tem que ser alta senão enche de água. Mas eles são caros e eu não consigo mais pagar sozinha”.
Os trabalhos que Porreta faz pelos bairros caminham com pequenas ajudas que ela recebe de amigos voluntários. Em troca, recebe o carinho e o respeito da população e, principalmente, dos meninos que se espelham nela para permanecer no bom caminho.
Agora, os planos são para o Natal. Marlene espera a colaboração de mais voluntários para repetir o sucesso que foi o Dia da Criança, quando distribuiu 400 bolas, mil cachorros-quentes e 200 litros de refrigerante. “Sozinha não consigo fazer uma festa, preciso de mais gente para erguer o novo barracão”, diz.

Texto: Manuella Tavares
Fotos: Natália Del Grecco